Crônicas do Cotidiano

Um dos muitos Severinos

João Carlos Lopes dos Santos


As grandes metrópoles brasileiras devem muito à força de trabalho dos nordestinos. Entre as décadas de 1960 e 1990, aconteceu um boom da construção civil no Brasil, nomeadamente no eixo Rio-São Paulo, e os nordestinos foram os grandes pilares da atividade. Não raro, os encontramos nos edifícios que construíram, agora trabalhando como porteiros.

Meu pai era um advogado que tinha gosto pela construção civil. A princípio reformava, depois passou a construir ‘gaiolas’, para ele e para os amigos, na Zona Norte do Rio de Janeiro. Chamava de ‘gaiolas’, os apartamentos de sala, quarto, cozinha, banheiro e área de serviço, que fazia em pequenas edificações de dois andares, dois por andar, objetivando renda de aluguel, que foi a sua aposentadoria e de minha mãe.

Ao contrário dele, nunca fui chegado à construção civil, mas em diversas oportunidades fui o fiscal de suas obras. À tarde, ele ia ver os processos no Fórum e me deixava plantado na construção tomando conta...

Os meus problemas acabaram

Foi quando, num belo dia, surgiu do nada um nordestino magro, mas forte. Devia ter uns trinta e poucos anos de idade.

Ele chegou manso e me perguntou:

     - Moço, tem vaga para servente de pedreiro?

Vivíamos os anos 1960, época de pleno emprego, quando era comum até aliciar os empregados dos outros. A rotatividade dos empregados era grande. Os já ocupados se demitiam, iam de emprego em emprego, sempre ganhando um pouco mais... Arranjar um bom pedreiro era coisa muito rara. Com fama de bom patrão, meu pai não tinha dificuldades, mas a mão de obra era escassa.

     - Meu pai já está chegando. Espera aí.

E ele ficou ali parado, em pé, calado, esperando, e eu sentado num monte de brita, aquelas pedras picadas que são utilizadas no concreto das lajes das edificações.

Meu pai tinha jeito para lidar com os operários:

     - Como é o seu nome? Disse ele, quando chegou.

     - Severino.

     - De onde você é, Severino?

     - Da Paraíba.

     - De que cidade?

     - Pilar.

     - Fica perto de onde?

     - De Campina Grande.

     - Trabalha como servente há quanto tempo?

     - Seis anos.

     - E, ainda, não virou pedreiro?

     - Não, senhor.

     - Trouxe a carteira de trabalho?

     - Sim, senhor.

     - Está empregado. Quando pode de começar?

     - Agora mesmo.

Para encurtar a história, Severino morava de favor, sozinho e longe, não sei onde. Meu pai fez dele o seu homem de confiança, ensinou-lhe o ofício de pedreiro. Tinha mulher e filhos, todos na Paraíba. Naquele mesmo dia, passou a morar num galpão nos fundos do quintal da nossa casa. Só depois de alguns anos, alugou uma casa e trouxe a família para morar no Rio de Janeiro.

Quando meu pai dava um tempo para as obras, ele ia trabalhar noutros lugares. Quando as retomava, chamava o Severino e ele voltava.

Construindo para Saddam Hussein

Ali pelo início dos anos 1980, tive a notícia de que ele tinha ido para o Iraque, contratado por uma grande empreiteira, para construir estradas e pontes para o governo do Saddam Hussein, aquelas mesmas que vimos pela televisão, nos noticiários da Guerra do Iraque de 2003.

Quando ele voltou, meu pai já estava doente e tinha parado de fazer obras. Severino trabalhava não sei onde, mas aos domingos, ali pelas oito da manhã, sempre aparecia lá em casa. Conversava com meu pai e contava como tinha sido a sua semana de trabalho. Depois, sempre tinha alguma coisa para consertar lá casa, almoçava conosco e ficava até de tarde. Virou uma espécie de filho do meu pai.

‘A Impecável – Maré Mansa’

Não me lembro da voz do Severino. Falava muito pouco, o necessário, mas me recordo da sua fisionomia de homem de bem, confiável. Andava limpo e bem composto. Comprava suas roupas na ‘A Impecável – Maré Mansa’, uma loja popular que tinha o seguinte esquema de venda a crédito: os trabalhadores, que tivessem a carteira de trabalho assinada, tinham crédito automático. Era só apresentar a carteira de trabalho e já saia da loja de fatiota, sapatos e demais acessórios novos. Dizia a propaganda no rádio: "Na Impecável Maré Mansa, você não precisa de avalista e de mais nada, basta a sua carteira assinada".

Há alguns anos, tive a felicidade de ouvir, no rádio, o depoimento de um dos sócios da empresa. Perguntado se, à época, havia muita inadimplência no crediário da ‘A Impecável’, respondeu:

     - O percentual de inadimplência era desprezível. Os trabalhadores, mormente os nordestinos, são muito corretos. O único patrimônio que eles têm é o nome limpo. Quando não podiam pagar, quase sempre por dispensa no emprego, iam à loja para se justificar e, novamente empregados, retomavam os seus pagamentos. Quando algum deles não honrava o seu compromisso, procurávamos saber junto aos empregadores e, invariavelmente, tomávamos conhecimento de uma história triste de queda de andaime e de outros tipos de acidentes letais.

Voltando ao Severino

Era de uma generosidade espantosa, que nem cabe aqui me alongar. Tinha caráter e lealdade, que é raro de se encontrar.

Ali por meados de 1985, meu pai caiu de cama por força de longa enfermidade, para morrer em 20 de maio de 1987.

Mesmo assim, com meu pai já inconsciente, Severino não deixava de chegar ali pelas 8 horas da manhã de domingo para a tradicional visita. Ficava parado, junto à cama, velando por ele, ou arrumando o que fazer na casa, para ser útil.

Lembro-me da figura do Severino, forte e rijo, no dia do enterro do meu pai. O rosto dele, como sempre, tranquilo. Severino não era dado a nenhum tipo de demonstração de emoções.

Foi construir mais gaiolas...

No dia 21 de junho de 1987, com um pouco mais de 50 anos de idade, exatamente um mês após o enterro de meu pai, chegou-me a notícia da morte do Severino, vítima de um câncer galopante.

Decerto, só posso concluir que meu pai o chamou para fazer umas gaiolas lá no céu e, como sempre, ele foi...

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