Crônicas do Cotidiano

O fim de uma paixão

João Carlos Lopes dos Santos.



Foi muito bom, intenso e duradouro, mas terminou. Inusitadamente, não deixou sequelas. As boas lembranças superaram a dor de qualquer saudade daquilo que não existe mais. Passo, a cada momento, ao lado da antiga paixão com o mais absoluto desprezo. Sou daqueles que viram a página e o mote passa a não existir.

Para que se situe, caro leitor, o assunto é a paixão por automóveis.  Legalista, filho de legalista, comecei a conduzir veículos com 18 anos, muito embora, antes de nascer, já houvesse umPackard 120, 1940, 4 Door, Sedan 2’, placa do ‘Distrito Federal 31-43’ (então, no Rio de Janeiro), na garagem lá de casa. O Packard era a moda nos anos 40. Os principais milionários tinham um parecido. Imagino o sacrifício do meu pai, na década bélica de 1940, para comprar dois deles, mesmo que usados.

Creia que não se trata, aqui, de nada inspirado na fábula do grego Esopo ‘A Raposa e as Uvas’. Tive de tudo que quis e ainda poderia ter... Cheguei a ter quatro automóveis ao mesmo tempo. Na década de 1970, comprava uma Brasília por ano e não vendia as que tinha, simplesmente porque, naquela época, automóvel era um excelente investimento, assim como linhas telefônicas. Ganhava-se dinheiro com isso, malgrado você não acreditar.


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Packard 1940, no Carnaval de 1946. Meu irmão José, eu, minha mãe e meu pai..
Todos os direitos da foto: João Carlos Lopes dos Santos..


Ali pelos anos 1960, quando via um bacana no banco de trás de um Mercedes Benz, dizia com os meus botões: o cara compra um carrão desse e o coloca na mão de um motorista de quepe, paletó e gravata... Hoje, se tivesse muita grana, faria o mesmo, mas sem os citados paramentos. O Packard dominou a década de 1940, o Cadilac rabo-de-peixe os anos 1950 e o Mercedes Benz veio a seguir, rotulados como sendo carros de milionários.


Tudo começou com um Packard 1949

Para ver um “PackardDeluxe Eight1949”,igual ao do meu pai, faça uma busca na internet. Orginalmente, era verde musgo e, depois, saia e blusa, com cores doces: caramelo e creme. Foi nesse Packard, placa do ‘Distrito Federal 3-52-27’, que aprendi a dirigir. Por fora, era um tanque de guerra, por dentro, um berço. Depois, em 1968, comprei o meu primeiro carro, um Volkswagen-1300, 1967, azul real, placa ‘GB - Rio de Janeiro 28-81-41’, depois ‘CI-8141’. Carros particulares, eram poucos. Além do bonde, trem e lotação era comum usar os chamados ‘carros de praça’, (táxis), de dois tipos: o Chevrolet 1951, invariavelmente preto e já em vias de extinção, e o valente fusquinha. Pegue uma foto dos anos 1960, fixada nas ruas do Brasil e verá que será difícil achar um carro que não fosse fusquinha.


Tive vários...

imagem Fusca 1300, 1967, em São Lourenço-MG, em 1971, na nossa lua de mel.
O primeiro que comprei, em 1968.
Todos os direitos da foto: João Carlos Lopes dos Santos.


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Lenita à espera do JCFilho, junto ao fuscão 1972.
Todos os direitos da foto: João Carlos Lopes dos Santos.


De 1968 ao início da década de 1980, tive vários fusquinhas e fuscões. Contudo, os meus carros, para passeio, eram carros da moda. Cheguei a ter dois Pumas, 1975 e 1978, este reproduzido abaixo, carro esportivo muito cobiçado, além de um Volkswagen Santana e um Ford Escort XR3.


imagem João Carlos Filho, eu e o Puma 1978, em frente ao Edifício Henri Laurens,
em Nova Ipanema, quando mudamos para a Barra da Tijuca, em 12 de junho de 1978.
Todos os direitos da foto: João Carlos Lopes dos Santos..


Quase virei comerciante de automóveis. Certo dia, estava numa oficina na Praça Verdun, no bairro carioca do Grajaú, debelando uma infiltração no meu Puma, quando um dos funcionários, me abordou:

_ João, você quer comprar o meu fusca? Você vai me ajudar muito. É aquele ali, o bege.

_ Quanto você está pedindo?

_ 500 pratas...

_ Você tem certeza que quer vendê-lo?

_ Por favor. Você nem imagina como vai me ajudar...

Tirei o cheque, sem sequer chegar perto do carro.


Feliz enguiço

Antes de complementar o episódio acima, em 1973, tinha comprado um fuscão 1971, para minha mulher. Comprar carro novo exigia entrar numa estranha e infindável fila, pagar ágio ou colocar acessórios, em venda casada, pelo dobro do preço que era comercializado nas inúmeras lojas espalhadas pelo Rio de Janeiro. Hoje, a venda casada está proibida no Brasil, por força do Código de Defesa do Consumidor, ex-vi o artigo 39, inciso I, configurando, tal prática, crime contra as relações de consumo, conforme reza o artigo 5º, inciso II, da Lei nº 8.137/1990.

No dia seguinte, deixei o meu fuscão 1972 com minha mulher e peguei o 1971 para trabalhar. Só que a primeira e segunda marchas não entraram. Tinha comprado, concluí, um fusca com a caixa de marchas pifada. Liguei para o meu amigo Luiz Ademar, hoje na cidade de Vizeu, em Portugal, que tinha um posto de combustíveis e uma loja de venda de pneus, na Avenida Suburbana, hoje, Dom Hélder Câmara, pedindo-lhe socorro. Fui em terceira e quarta marchas da Usina da Tijuca, onde morava, até à oficina mecânica de um amigo dele, localizada próximo ao bairro dos Pilares.

Chegamos à oficina mecânica, pontualmente ao meio-dia.

Disse o Luiz Ademar:

_ Adão, o meu amigo João comprou este carro ontem e, hoje, apresentou um problema na caixa de mudanças.

_ Meio-dia, Luiz... Já até lavei as mãos para almoçar.

Entrei na conversa, já resignado com a troca da caixa de mudanças:

_ Não, Adão, o carro fica aí...

O Adão saiu da conversa, ficando eu, o José, irmão do Adão, e o Luiz.

No máximo em cinco minutos, voltou o Adão:

_ O carro está pronto. Aliás, está em excelente estado. Dei uma olhada também na regulagem do motor. Está tudo perfeito.

_ Então, o que houve, Adão?

_ Embaixo do banco traseiro do fusca, há um parafuso que segura a caixa de mudanças. Com a trepidação, o parafuso afrouxa e algumas marchas ora encaixam, ora não encaixam. Do jeito que deixei, não vai acontecer mais.

_ Para você almoçar, rápido e rasteiro, quanto lhe devo?

_ Que nada... Isso é uma bobagem.

A partir desse dia, ele foi o mecânico de todos os meus carros e o apresentei a inúmeros amigos.


Voltando ao carro comprado no Grajaú

Levei o fusquinha 1200 cilindradas, que devia ter uns dez anos de uso, direto à oficina do Adão. De fato, o carro estava bem ruinzinho. Recomendei que trocasse o que fosse necessário e que, depois, acompanhasse as repinturas necessárias, numa oficina em frente à da dele.

No dia combinado, voltei e o Adão me disse:

_ Troquei tudo que era necessário na parte mecânica. Para que você tenha uma ideia, o carro tinha quatro velas: cada uma delas de carros de marcas diferentes...

De lá, fui para a loja de pneus do meu amigo Luiz Ademar, fazendo a mesma recomendação.

Quando fui buscar o carro e ele me disse:

_ Coloquei cinco rodas, cinco pneus e cinco câmaras de ar. Tudo novo e original. Agora, um detalhe: nunca vi câmaras de ar com tantos remendos, inclusive alguns em cima de outros...

Terminei a tarefa na oficina do Grajaú, onde tinha comprado o carro. Foram trocadas todas as borrachas dos vidros e das portas, os vidros arranhados por novos, os elevadores dos vidros das portas, limpadores do para-brisas; colocaram, ainda, um rádio toca-fitas, faróis de milha e neblina, capas de couro, volante esportivo e alavanca de mudanças curta. Só não foi instalado o ar condicionado, porque o fusca não aceitava.

Quando o carro ficou pronto, me diz o ‘Bucha’, o dono anterior do carro:

_ João, está vendo aquele cara, ali na porta? Ele quer comprar o fusca.

_ Bucha, não comprei para vender... Agora, quero curtir o carro.

_ Ele está oferecendo ‘tanto’...

Não me lembro quanto, mas era o triplo do dispêndio na aquisição e restauros. O cara pagou em dinheiro vivo. Vendi o carro e dei uma gratificação ao antigo dono.

Mudando o que deve ser mudado, multiplique essa história por cinco ou seis vezes, eis que peguei a fama de restaurador de fusquinhas. Com isso, me divertia, com o que jamais tive prejuízo. Não agia por dinheiro, mas por prazer. Deixava o Puma na garagem e desfilava com os fusquinhas velhos, feliz da vida. Sempre fui chegado a um carrinho velho, desde que bem conservado. Com um deles, peguei a estrada até Conselheiro Lafaiete (MG), onde um primo ironicamente me perguntou pelo meu Puma....

Voltando ao meu amigo Adão, quando mudei para Nova Ipanema, passei a levar os meus carros à residência dele, na Rua Aroazes, paralela ao ‘Autódromo de Jacarepaguá’, então, uma espécie de chácara, onde, hoje, está erguido um edifício.

Levava meus carros lá, a cada 10 mil quilômetros, para as revisões. Ele os levava e, depois, os trazia da sua oficina, próxima ao Largo dos Pilares. Invariavelmente, pagava contas ínfimas, muitas vezes, apenas a troca do óleo e do filtro do cárter. Como muitos amigos foram clientes do Adão, ao lerem este relato, vão se lembrar dele com o mesmo carinho. Era competente, íntegro, da mais absoluta confiança. Nos 33 anos em que foi meu mecânico, acreditem, jamais meus carros enguiçaram.

Em 28/2/2006, para a tristeza da minha família e de inúmeros amigos, meus e dele, veio a triste notícia: o Adão tinha falecido na cidade de Cabo Frio (RJ), vítima de um enfarto, conforme me reportou o seu irmão José.


Os ônus

Em qualquer situação haverá sempre o ônus e o bônus. O trânsito da cidade do Rio de Janeiro está absolutamente caótico e já desbancou o da cidade de São Paulo. Ida e volta à garagem do edifício onde moro, para contornar a ‘Cidade das Artes’, na Barra da Tijuca, no máximo, levava cinco minutos. Agora, março de 2018, quando oxigeno este texto, em certos momentos, o mesmo trajeto, de cerca de quatro quilômetros, pode durar uma hora.

Nas horas erradas, ir ou voltar de onde moro ao Centro do Rio, uma distância de 36 quilômetros, pode durar mais de duas horas. “Pardais” a multar, estacionamentos caros e lotados, flanelinhas a extorquir, as inócuas vistorias, as revisões e seus percalços (Ai, que saudades do Adão...), o estresse na hora de abastecer, a via-crúcis que é vender um carro usado e a outra que é aturar a conversinha estereotipada dos vendedores e os arrastões me levaram aos estertores da agonia...


Os Bônus

Muito embora o carro seja indispensável para muitos – longe de mim querer imprimir aqui qualquer paradigma –, diante de tantos ônus em relação a tão poucos bônus, concluí que o carro próprio virou, para mim, um estorvo, até porque o último que tive rodava algo em torno de 100 quilômetros por mês...

Por tudo isso, resolvi acabar com o problema. Sou um colecionador de soluções. Eu que, desde que nasci, tive pelo menos um carro à disposição na garagem, hoje, não tenho nenhum. Uso os ônibus do condomínio, os trens do Metrô e outros transportes solicitados por aplicativo.

Sinto falta do carro para ir ao supermercado, às festas e nas viagens para fora do Rio de Janeiro, o que, se a generosidade de um filho não resolver, um aplicativo no aparelho celular decerto resolverá.

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