Crônicas do Cotidiano

Dando minhas carteiradas

João Carlos Lopes dos Santos



Dos sete pecados capitais praticados pelos outros – avareza, gula, inveja, ira, luxúria, preguiça e soberba –, o que mais me atinge é a soberba, mas vamos chamá-la de arrogância. Detesto as pessoas arrogantes. Por isso, tomo muito cuidado quando em determinada situação me sinto autossuficiente, de vez que saiba que um patamar acima já se cristaliza a arrogância.

A arrogância é uma doença social altamente contagiosa. Por isso, tomo muito cuidado. Essa doença ataca também as empresas e, por consequência, as pessoas que lá trabalham, posto que, em casa de arrogante, até o cachorro late arrogantemente. Quando criei essa imagem, conversando com um amigo, de pronto, ele testemunhou, rindo muito, a existência de um vizinho muito arrogante, cujo cão também late arrogantemente.

Conheço uma magistrada que, em certas ocasiões, quando indagada sobre sua profissão, diz que é serventuária da Justiça... Com isso, sem mentir, não afronta e nem tira onda com ninguém. Conduta irretocável! Outra, de quem também gosto muito, malgrado, com ambas, não ter conversado sequer 15 minutos em toda a minha vida – isso, somando-se todas as nossas conversas –, um dia fez questão de dar baixa, pessoalmente, na carga de um processo, que iria devolver ao cartório, quando se sabe que isso não é tarefa de magistrado. Poderia também citar indiretamente outros magistrados que têm o mesmo perfil. As pessoas ganham reconhecimento com esse tipo de atitudes.

Contudo, para falar a verdade – dizem alguns, o pior dos meus defeitos –, já dei e ainda dou as minhas carteiradas...

A carteira de solicitador

De 1969 até 1971, tinha uma carteira muito propícia às carteiradas, numa época em que havia muito respeito pelas autoridades. Tipo livrinho, azul escuro, estampava as armas da República, em curva ‘Ordem dos Advogados do Brasil’, o que dificultava a leitura, abaixo ‘carteira de identidade’ e, em caixa alta, lia-se: SOLICITADOR. Como uma imagem vale mais do que mil palavras, eis a imponente carteira:





(Fotos: João Carlos Lopes dos Santos Filho)

No entorno das ruas Dom Manuel e Erasmo Braga, no Centro do Rio de Janeiro, todos sabiam da sua real importância. O termo ‘solicitador’ era restritivo. Não era dado ao portador daquela carteira azul o direito de requerer em juízo. Podia, tão-somente, solicitar os processos nos balcões dos cartórios, tal qual fazem os atuais portadores das mesmas carteiras azuis, só que, agora, com o título de estagiário. Em Portugal, há outro tipo de solicitador, que não se confunde com as funções do solicitador que fui. Pesquise a palavra ‘solicitador’ no Google.

Nas funções de perito judicial, com muito prazer, divido os balcões das serventias com essa garotada, posto que jamais invoquei o direito de atendimento prioritário que me dá a terceira idade. São meninos e meninas de muita qualidade, que me dão a certeza de um futuro promissor para a advocacia. Volta e meia, quando a fila é longa e surge a oportunidade, lhes conto a desconhecida história dos solicitadores.

Nas lides forenses, a carteira do passado valia exatamente o que vale a dos estagiários de Direito de hoje. No entanto, em qualquer outra circunstância, aquela carteirinha azul conferia ao seu portador uma aura de autoridade. Teria muitas histórias para lhes contar, mas vou reportar apenas duas.

As carteiradas do passado

Estava malparado à direção do meu automóvel, esperando meu pai, coisa de dois minutos, em frente ao prédio do DETRAN, à época, na Praça Tiradentes. Ali, diante do Departamento de Trânsito, com seria lógico, chegou um policial militar:

_ O senhor está malparado. Carteira de identidade e de motorista.

_ É coisa rápida, seu guarda, mas o senhor está coberto de razão. Cumpra com sua obrigação.

Por uma questão de localização mais fácil, no bolso do paletó, lhe passei primeiro a carteira de solicitador. Sequer a abriu. Olhou o livreto, bateu continência e me disse:

_ Doutor, o senhor me desculpe. Pode ficar aí, sem qualquer problema.

Em menos de um minuto, chegou meu pai. Contei-lhe o ocorrido e fomos rindo e comentando o episódio de lá até ao estacionamento, que ficava ao lado do número 29 da Rua Dom Manuel.

Essa aconteceu na antiga estrada Rio-Belo Horizonte, pouco antes de Juiz de Fora, já em Minas Gerais. De madrugada, na entrada para cidade de Bicas, com destino à São João Nepomuceno, ia dirigindo tranquilamente, numa época em que nas estradas não se tinha notícia de violência. Depois de uma curva, surge uma blitz do Exército. Com um facho de holofote em cima do carro, protegido por um pelotão portando metralhadoras INA ponto 45 – minha velha conhecida dos tempos de serviço à pátria –, um sargento me fez sinal para que parasse:

_ Carteira de identidade. Laconicamente, solicitou o sargento.

Olhou demoradamente a carteira, abriu só para conferir a fotografia e, ficando na posição de sentido, bateu continência e me disse:

_ O senhor me desculpe o incômodo. Tenha uma boa viagem.

Poderia aqui contar outras histórias, mas vou reportar apenas algumas pérolas que ouvi, ao apresentar a importante carteira fora das lides forenses:

Numa repartição pública:

_ Por favor, senhor, pode falar direto com o nosso diretor.

Em outra repartição:

_ Se o senhor tivesse se apresentado antes, não precisaria ficar na fila.

Como regra geral, os homens são dedutivos e as mulheres curiosas. As indagações femininas aconteciam, mais ou menos, assim:

_ Parabéns! Tão jovem e já é solicitador... Mas o que é que faz mesmo um solicitador?

Continuo a dar as minhas carteiradas, agora com maior proveito. Portando carteiras do RioCard e do Metrô-Rio, estribado no meu direito constitucional de cidadão da terceira idade, mas sem arrogância, ando dando as minhas carteiradas nos cobradores de ônibus e nas estações do Metrô, passando livremente pelas roletas sem pagar as passagens.

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