Crônicas de Nova Ipanema

Um retrato da alma luso-brasileira

João Carlos Lopes dos Santos



Para que me entendam, escrevo em cima da ‘Festa Portuguesa’ de 16/10/2010, acontecida no Condomínio Nova Ipanema. Contudo, não a reporto. Arvoro-me em cronista, jamais como repórter. São técnicas diferentes.

Festas, como se sabe, começam com grande expectativa e procedimentos, mormente das mulheres: vestido novo, cabelo diferente, maquiagem e unhas caprichadas. Contudo, diz o povo, sempre terminam com aquele ar de cansaço, eles de gravata frouxa e paletó no ombro; elas descalças, fugindo das pedras portuguesas de Nova Ipanema, com os saltos altos na mão – excelente ideia a de se oferecer sandálias nas festas...

As festas portuguesas, nos moldes que conhecemos no Brasil e não mais tão comuns em Portugal, invertem a sequência do primeiro parágrafo. Alguns convidados chegam ensimesmados. O ritual favorece: bolinho de bacalhau, vinho, doces típicos, grupo folclórico, fadistas e seus músicos. Destaco a guitarra portuguesa, que se debulha em lágrimas, diferentemente do chorinho do nosso cavaquinho, que transborda alegria. Tudo na festa do imigrante português leva à tristeza. Vê-se isso em alguns semblantes. É verdade, posto que não escreva para enganar.

É que tudo isso leva às recordações familiares e, mormente, daqueles que já se foram e costumam ter fados como fundos musicais... Mas só quem tem sangue luso ou ligações afetivas é que entram nesse transe. Não sendo o seu caso, vá a esse tipo de festa com o espírito preparado só para conhecer a cultura, comer e beber do melhor.

Silêncio! Vai-se cantar o fado.

Luzes apagadas. Velas acesas em cada mesa. É de propósito, pois quanto mais profundas as lembranças, mais olhos ficarão marejados. Foram os portugueses que inventaram a palavra saudade. Então, ao som de fados tradicionais, começam as lembranças. Vou desenvolver as minhas, porque não posso adentrar nas recordações alheias.

Universidade de Coimbra

Quando o cantor Mário Simões nos brindou com ‘Coimbra’, de capa preta coimbrã com cortes e tudo mais que tínhamos direito, lembrei-me do meu pai. Chamava-se José Lopes dos Santos Filho. Chegou ao Rio de Janeiro, em 1922, com treze anos de idade e semianalfabeto. Veio mediante promessa de fazer turismo com meu avô que, sem sequer se despedir, o deixou num colégio interno, sob a responsabilidade de um tio e aos cuidados da diretora da escola, e voltou a Portugal. Estava certo de que, deixando-o no Brasil, teria melhor sorte do que se voltasse à lavoura da Magalhã, nos arredores de Vila Real de Trás-os-Montes. Tendo errado nos meios, acertou nos fins. Meu pai, que se formou em Direito, lecionou na escola em que estudou, foi seu diretor e, depois, seu dono. Mesmo vitorioso e sem jamais ouvi-lo se queixar, decerto, tinha lá as suas mágoas.

Mas também dei desgosto a meu pai – pelo menos um. Quando me preparava para o exame vestibular de Direito, em tom solene, me chamou para uma conversa:

- João, você vai fazer o seu curso de Direito em Coimbra.

- Pai, nem pensar...

Lembro-me do seu semblante de inequívoca decepção. A juventude é uma doença que se cura sem remédios...

Francisco José

Poucos cantores fizeram sucesso no Brasil como ele. Falo aqui dos anos de 1950. Foi o mais famoso intérprete da música portuguesa no Brasil. Tinha um programa semanal na TV brasileira em horário nobre, vendia muito discos, principalmente para o público feminino. Era comum se ouvir moçoilas cariocas da gema, cantando ‘Olhos Castanhos’ carregando no sotaque lusitano. Entre outras canções, essa ultrapassou a marca de um milhão de cópias. Vivia – e muito bem – da venda dos seus discos e dos seus shows no Brasil, Portugal e também em inúmeros outros países.

Amália Rodrigues

A fadista Maria Alcina, que conheço desde os tempos do restaurante ‘A Desgarrada’, em Ipanema, me remeteu à Amália, de ‘Perseguição’ e ‘Casa da Mariquinhas’, que, por sua vez, me recordou da outra Amália, a dos Santos, esta brasileira, filha de açorianos da Ilha Terceira, minha mãe. Casada com o transmontano José, era mais portuguesa do que ele. Ouvia-se a Rodrigues o dia todo na casa da minha infância e, é lógico, Francisco José.

A catarse

Segundo o dicionário Aurélio, ‘catarse é oefeito salutar provocado pela conscientização de uma lembrança fortemente emocional e/ou traumatizante, até então reprimida’.A meu ver, foi isso que aconteceu na nossa festa portuguesa. Quando terminou, as pessoas se abraçavam radiantes. E, pelos caminhos vicinais entre os prédios de Nova Ipanema, lá iam para casa, até os mais conhecidos carrancudos, felizes, literalmente de almas lavadas.

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